quinta-feira, 22 de julho de 2004

CONTA-CORRENTE

''A única certeza da vida é a morte. E é a certeza em que menos se acredita. Toda a história do mundo assentou sempre na ignorância de que se é mortal. Aqueles mesmos que o sabem não o vêem - a não ser em instantes de excepção. Que seria o mundo com essa evidência sempre presente? Só o homem sabe que é mortal. Mas raramente o homem sobe até si.
Nós ainda não aprendemos a morte. Mas que admira, se a matéria é tão difícil e se só há pouco tempo o homem "começou" realmente a tirar o curso de morrer? Quando nascemos, assinámos logo um contrato com a morte. Porque é que depois fazemos todo o possível por não cumpri-lo?

É fascinante ler-se uma página de um autor morto e sentirmos viva a presença do seu espírito. Mas raramente o pensamos. O que pensamos sem pensar é a realidade do texto, a sua realização como que por si próprio, a vida própria que ele tem. Mas a verdade é outra. A verdade é que o seu autor está "ali" vivo, no seu tom, na sua vibração, no seu desajeitamento. A verdade é a permanência viva do que morreu. A verdade é a permanência viva de um espírito morto, a comunicação de nós com alguém que já é nada, a permanência viva do que morreu. A verdade é ser o não ser. Como num céu para um crente, a obra de arte retém o mundo complexo do ser e sentir de quem já não sente nem é. Nós convivemos com uma pessoa inteira na sua forma de ser pessoa sem o corpo em que ela era e o espírito que a habitava. Assim um mundo de vida se sobrepõe à vida dos vivos. É misteriosa esta coisa de serem contingentes, passageiros os problemas e paixões do nosso tempo e vivermo-los como se fossem únicos, definitivos, absolutos para o passado e para o futuro.

Não, quando rapaz, gostava pouco de ler. Gostava era de escrever. E espontaneamente nunca seria grande leitor. Mas habituei-me a ler como a lavar os dentes, depois de comer, as mãos antes de comer. E ficou-me o gosto. Mas nunca superior ao de escrever. Passava bem uma condenação a não ler. Dado que pudesse escrever. E tanto que hoje não tenho nada para ler. Ou seja, o gosto voltou ao princípio... Quando acabei de dar "Os Lusíadas", todos os alunos deram um grande suspiro de alívio. Bem me esfolei eu a explicar o significado simbólico do poema, a sua expressão na individualidade nacional, a consciência da nação como um todo num momento excepcional da sua história, a superior realização de alguns episódios (o da Inês, do Adamastor, outros). Nada. Deram todos um suspiro de alívio. E no entanto, amanhã, quando adultos, muitos deles hão-de recuperar o valor do poema e vão decerto impô-lo aos filhos. Mas nada de estranho. A cultura, como a higiene, tem de se impor à força. Abandonado a si, o homem não se lava. Mas depois descobre que é desagradável comer com as mãos sujas.

A minha vida vai-se determinando não pelo que se lhe acrescenta, mas pelo que se lhe vai reduzindo. Penso em Melo, onde raramente voltarei a ir. Toda a minha infância assim me vai ficando na imaginação. Sempre aí ela foi sendo a sua verdade. Mas o ir a Melo era uma oportunidade de ir conferindo. Não confiro mais nada. Um novo ano findou, com ele a vida me finda. Porque uma vida não é o que ela dura, mas o que dura o que nela acontece. O que nela me acontece é só o meu acontecer, não o seu perdurar. Não me lamento - não me lamentes. Reconheço apenas, na inteireza de mim, a que nada de si desperdiça no lamentar. Estou só, mais do que nunca. Mesmo os que nos amam amam-nos sob condições - na condição de não abusarmos desse amor e de não perdurarmos para além do que ele dura. Porque ele não é eterno como numa dimensão divina, mas humano e portanto perecível e com prazo marcado.''

Vergílio Ferreira in ''Conta-Corrente''.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Comentários (só em português, Portuguese only)

Clique em "Mensagens antigas" para ler mais artigos fantásticos do Arquivo.

Temas

(so)risos (4) 100nada (1) 25 de Abril (5) 4º aniversário (1) 90's (2) actualidade (1) Amália (1) Ambiente (2) Aniversários (16) Ano Novo (6) Arquitectura (1) Arte (2) Astronomia (6) avacalhando (1) Blogosfera (78) boicote AdC (1) borlas (2) burla (1) cantarolando (1) cidadania (4) Ciência (6) Cinema (7) Cinema de Animação (2) classe (1) coisas (1) coisas da vida (5) Como disse? (1) Computadores e Internet (28) Contra a censura (1) contrariado mas voltei (1) corrosões (1) cultura (1) curiosidades (1) dass (1) de férias; mas mesmo assim não se livram de mim (2) Década Nova (1) Democracia (5) depois fica tudo escandalizado com as notas dos exames de português (1) Desporto (3) Dia do Trabalhador (1) Direito ao trabalho (1) ditadores de Esquerda ou de Direita não deixam de ser ditadores (1) é que eu amanhã tenho de ir trabalhar (1) eco (1) Economia (5) efemérides (3) eles andam aí (1) Elis (2) Em bom português se entendem 8 nações (2) em homenagem ao 25 de Abril (1) Em Pequim o Espírito Olímpico morreu (1) escárnio e maldizer (1) Escultura (3) espanta tédio (1) estado do mundo (1) Fado (2) Fernando Pessoa (1) festividades (3) Festividades de Dezembro (2) Filosofia (3) Fotografia (34) fotojornalismo (1) fuck 24 (1) fundamentalismos (1) futebol (1) Futuro hoje (1) ganância (3) gastronomia (1) Geografia (1) Grande Música (46) grátis (1) História (7) inCitações (15) injustiça (1) Internet (4) internet móvel (1) Internet: sítios de excelência (1) intervenção pública (3) inutilidades (7) Jazz (2) jornalismo (1) ladrões (1) Liberdade (7) liberdade de expressão (2) língua portuguesa (4) Lisboa (3) listas (1) Literatura (13) Livro do Desassossego (1) Má-língua (1) mentiras da treta (1) miséria (1) Modernismo (2) MPB (5) Mundo Cão (5) música afro-urbana (1) Música Popular Brasileira (1) Músicas (15) não te cales (2) Navegador Opera (2) ninguém me passa cartão... (1) Noite (1) Nossa língua (1) o lado negro (1) o nosso futuro (1) oportunismo (1) os fins nunca justificam os meios (1) Pandemias (1) paranoia (1) parvoíces (1) pessoal (8) Pintura (162) podem citar-me (3) Poesia (31) política (10) política internacional (2) porque são mesmo o melhor do mundo (2) Portugal (3) Portugal de Abril (4) preciosa privacidade (6) preguiça (1) Programas de navegação (1) quase nove séculos de crise (3) quotidiano (2) resistir (2) resmunguices (7) respeite sempre os direitos de autor (1) Seleção AdC - Internet (1) Selecção AdC - Internet (2) serviço público AdC (1) Sexo (1) so(r)risos (5) Solidariedade (3) Taxa Socas dos Bosques (1) Teatro (1) Tecnologia (1) televisão (1) temos de nos revoltar (1) Terceiro Mundo (20) The Fab Four (1) trauteando (1) Um aperto no coração (1) umbigo (8) UNICEF (1) vai tudo abaixo (2) vaidades (7) vampiros (1) Verdadeiramente Grandes Portugueses (4) vidas (1) vou ali e já venho (1) YouTube (3)