terça-feira, 12 de outubro de 2004

CONSTRUÇÃO

«Construção»

Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego

Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público

Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contra-mão atrapalhando o sábado

--

Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir
Deus lhe pague

Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir
Pela fumaça, desgraça, que a gente tem que tossir
Pelos andaimes, pingentes, que a gente tem que cair
Deus lhe pague

Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir
E pelas moscas-bicheiras a nos beijar e cobrir
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir
Deus lhe pague

Letra e música de Chico Buarque de Hollanda.
in LP ''Construção'', 1971.

Transmitiu o Magazine d'A2 um excerto deste tema e veio-me à memória a lembrança dos meus nove anos, época em que pela primeira vez o ouvi. Nesses tempos dava-me sempre, inexplicavelmente, um nó na garganta.
Tenho agora o cd rodando no leitor e continuo sentindo essa angústia absurda perante algo de beleza tão estranha.

PS: Constato agora que me esqueci das três estrofes do tema ''Deus lhe pague'' cantadas pelo coro no fim (na gravação de 71), lapso entretanto corrigido.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Comentários (só em português, Portuguese only)

Clique em "Mensagens antigas" para ler mais artigos fantásticos do Arquivo.

Temas

(so)risos (4) 100nada (1) 25 de Abril (5) 4º aniversário (1) 90's (2) actualidade (1) Amália (1) Ambiente (2) Aniversários (16) Ano Novo (6) Arquitectura (1) Arte (2) Astronomia (6) avacalhando (1) Blogosfera (78) boicote AdC (1) borlas (2) burla (1) cantarolando (1) cidadania (4) Ciência (6) Cinema (7) Cinema de Animação (2) classe (1) coisas (1) coisas da vida (5) Como disse? (1) Computadores e Internet (28) Contra a censura (1) contrariado mas voltei (1) corrosões (1) cultura (1) curiosidades (1) dass (1) de férias; mas mesmo assim não se livram de mim (2) Década Nova (1) Democracia (5) depois fica tudo escandalizado com as notas dos exames de português (1) Desporto (3) Dia do Trabalhador (1) Direito ao trabalho (1) ditadores de Esquerda ou de Direita não deixam de ser ditadores (1) é que eu amanhã tenho de ir trabalhar (1) eco (1) Economia (5) efemérides (3) eles andam aí (1) Elis (2) Em bom português se entendem 8 nações (2) em homenagem ao 25 de Abril (1) Em Pequim o Espírito Olímpico morreu (1) escárnio e maldizer (1) Escultura (3) espanta tédio (1) estado do mundo (1) Fado (2) Fernando Pessoa (1) festividades (3) Festividades de Dezembro (2) Filosofia (3) Fotografia (34) fotojornalismo (1) fuck 24 (1) fundamentalismos (1) futebol (1) Futuro hoje (1) ganância (3) gastronomia (1) Geografia (1) Grande Música (46) grátis (1) História (7) inCitações (15) injustiça (1) Internet (4) internet móvel (1) Internet: sítios de excelência (1) intervenção pública (3) inutilidades (7) Jazz (2) jornalismo (1) ladrões (1) Liberdade (7) liberdade de expressão (2) língua portuguesa (4) Lisboa (3) listas (1) Literatura (13) Livro do Desassossego (1) Má-língua (1) mentiras da treta (1) miséria (1) Modernismo (2) MPB (5) Mundo Cão (5) música afro-urbana (1) Música Popular Brasileira (1) Músicas (15) não te cales (2) Navegador Opera (2) ninguém me passa cartão... (1) Noite (1) Nossa língua (1) o lado negro (1) o nosso futuro (1) oportunismo (1) os fins nunca justificam os meios (1) Pandemias (1) paranoia (1) parvoíces (1) pessoal (8) Pintura (162) podem citar-me (3) Poesia (31) política (10) política internacional (2) porque são mesmo o melhor do mundo (2) Portugal (3) Portugal de Abril (4) preciosa privacidade (6) preguiça (1) Programas de navegação (1) quase nove séculos de crise (3) quotidiano (2) resistir (2) resmunguices (7) respeite sempre os direitos de autor (1) Seleção AdC - Internet (1) Selecção AdC - Internet (2) serviço público AdC (1) Sexo (1) so(r)risos (5) Solidariedade (3) Taxa Socas dos Bosques (1) Teatro (1) Tecnologia (1) televisão (1) temos de nos revoltar (1) Terceiro Mundo (20) The Fab Four (1) trauteando (1) Um aperto no coração (1) umbigo (8) UNICEF (1) vai tudo abaixo (2) vaidades (7) vampiros (1) Verdadeiramente Grandes Portugueses (4) vidas (1) vou ali e já venho (1) YouTube (3)